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Paulo Gustavo é oportunidade de reestruturação do diálogo entre governo e produtores culturais

Lei sancionada e publicada pelo MinC prevê o retorno dos conselhos culturais

Regulamentada pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva nesta quinta-feira (11), foi publicada pelo Ministério da Cultura (MinC), nesta sexta-feira (12), a Lei Complementar nº 195, de 08 de julho de 2022, chamada Lei Paulo Gustavo em homenagem ao humorista que faleceu por complicações decorrentes da covid-19 aos 42 anos em 4 de maio de 2021. A Lei que entrou em vigor, dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas em decorrência dos efeitos econômicos e sociais da pandemia causada pelo novo coronavírus.

O Governo Federal irá repassar R$ 3,862 bilhões a estados, municípios e ao Distrito Federal para aplicação em ações emergenciais que visem a combater e mitigar os efeitos da pandemia sobre o setor cultural. A previsão é de que Mato Grosso do Sul, receba R$52.657.455,14 sendo R$ 27.630.081,91 direcionados ao Estado e R$5.027.373,22 repassados às cidades segundo os critérios de destinação de 20% ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM), e de destinação na ordem de 80% proporcional à população.

Considerado um modelo mais democrático, com um olhar especial as minorias sociais dentro dos setores culturais e artísticos, a implementação da Lei Paulo Gustavo ocorre em paralelo a fóruns de debates públicos da classe dos produtores culturais de cada região em parceria com representantes de autarquias nos estados e municípios. “Nesse momento, a própria Lei Paulo Gustavo prevê que se realize as escutas, as oitivas. Para poder gerar os editais em consenso com a sociedade civil, no caso, os colegiados de música, dança, culturas populares. Os que compõe o sistema aqui no estado e no município de Campo Grande”, relata o ator e diretor do Imaginário Maracangalha, Fernando Cruz.

Presidente Lula e a Ministra da Cultura Margarete Menezes durante cerimônia. Foto: Divulgação MinC

Festejado como o início de uma nova era de políticas para o setor artístico cultural, a reabertura para o diálogo democrático é vista como uma convocação à reestruturação das instâncias de debates entre produtores culturais e o governo por meio dos conselhos e fóruns de cultura. “Porque é uma composição essencial… Paritária entre o Governo e Sociedade civil, em sua maioria, deliberativo”, justifica Fernanda Kunzler, atriz e diretora do Teatral Grupo de Risco.

De acordo com Fernando Cruz, ao assumir a presidência da República, Michel Temer deu o primeiro passo para desestruturar a organização dos setores artístico culturais ao anunciar a extinção do MinC em 12 de maio de 2016. “Em 2016, quando o Temer entra, no golpe, a primeira coisa que ele faz é acabar com o Ministério da Cultura bem no meio do processo em que os conselhos estão sendo criados dentro dos municípios. E, ao não existir mais o Ministério da Cultura, os conselhos que já existiam ficaram meio desativados, outros conselhos que estavam sendo criados pararam de ser criados, implantados”, recorda.

Segundo Fernanda, a extinção do Ministério Da Cultura, ensaiado por Temer e concretizado por Bolsonaro desestruturou toda uma organização do setor cultural alcançada a partir do Marco Regulatório das Organizações Da Sociedade Civil. “Extinguiu o Ministério da Cultura, extinguiu uma série de políticas que já existiam ali, que eram reguladas via Ministério da Cultura. Em seguida ele foi retirando os conselhos, as políticas de fomento e incentivo, por exemplo os prêmios. Acabou com a Funarte. Desestruturou todas essas instituições que eram responsáveis pela política cultural”, explica a atriz.

Lembrado como período de ataques a instituições de ensino e culturais, o governo de Jair Messias Bolsonaro criou a Secretaria da Cultura, alocada no Ministério do Turismo. Sucedeu-se então uma série de escândalos ligados a uma verdadeira dança de cadeiras, começando pelo primeiro secretário da pasta o dramaturgo Roberto Rêgo Pinheiro, conhecido pelo nome artístico Roberto Alvim. Elogiado por Bolsonaro, Alvin publicou na noite do dia 16 de janeiro de 2020 um vídeo onde faz um discurso diretamente baseado em Paul Joseph Goebbels, um político alemão e Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945. Tal discurso, manifestava o desejo de cercear a produção artística e cultural brasileira sobre os moldes ideológicos da direita.

“Nesses últimos anos, a cultura tem sido muito prejudicada, tem sido alvo de um discurso de ódio. Em todas as sociedades, a arte é eminente à existência humana. E quando a política se coloca contra a cultura, contra a criação, compromete a nossa existência. Para quem vive da cultura, a pandemia trouxe muitas dificuldades. Agora a gente começa a ter um respiro. É um momento importante de resgate da importância da cultura”, discursou a deputada do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleice Jane durante a primeira audiência pública sobre a Lei Paulo Gustavo na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul (ALEMS), realizada na última quarta-feira (10).

Em 22 de abril de 2019, Bolsonaro revogou a Política Nacional de Participação Social, extinguindo os colegiados da administração pública federal, afetando as organizações estabelecidas das classes culturais. “No conselho que se debate as políticas, mecanismos de distribuição, demandas, que se houve os colegiados representados… Etc. Se não tiver conselho, como que se escuta a diversidade cultural e suas demandas? Como se aplica a lei?”, questiona Fernanda Kunzler.

Segundo a atriz, os efeitos desse período ainda são sentidos pelo setor que precisa se adequar a solicitação de organização participativa da Lei Paulo Gustavo. “Há muitos municípios que não possuem conselho e não sabem como funciona. Em Campo Grande, por exemplo, capital do estado, neste momento não tem conselho nomeado, e falha da própria Sectur”, relata a atriz do Teatral Grupo de Risco, Fernanda Kunzler.

Audiência Pública no MIS. Foto: Letícia Monteiro

Debatido no segundo mandato de Luís Inácio Lula da Silva, e promulgado no Governo de Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT), em 2015, o Marco Regulatório das Organizações Da Sociedade Civil estabeleceu no campo de organização da classe artística cultural, como sociedade organizada participativa, três espaços de representação: os colegiados, os fóruns e o conselho, que integram o chamado Sistemas de Culturas.

Formado por grupos de linguagens especificas das artes — assim, a rigor, há o colegiado da dança, do teatro, da música, das artes plásticas etc., o colegiado é onde as demandas especificas de linguagem da arte são apresentadas e debatidos e encaminhados para a segunda esfera de diálogo que é o fórum. Nos fóruns, são concentradas as associações com ou sem fins lucrativos como participantes individuais ou grupos das diversas linguagens artísticas, independentemente de este estar inserido em um colegiado.

É no Fórum que são eleitos os representantes que irão compor o conselho da classe artística estabelecida por meio de eleições. Segundo Fernanda, durante o sufrágio, o fórum dos artistas locais tem a premissa de eleger representantes de cada uma das linguagens artísticas para o conselho e, se não ocorrer uma indicação por parte dos colegiados, o fórum é quem indica alguém. Uma vez estabelecido, o conselho deve agir em favor da sociedade civil junto à gestão pública que, por sua vez, terá seu próprio conselho com número equivalente de membros para que aja o diálogo democrático entre essas duas esferas.

De acordo com Fernanda, cabe ao conselho a realização de reuniões periódicas e extraordinárias com o fórum e com as instâncias do poder público. Os conselheiros são indicados dentro de seus setores ou pelo fórum, sendo um do teatro, um da dança, um da música, etc. Já as reuniões do conselho são bimestrais. Assim, a sociedade civil, representada pelo conselho, leva a demanda que discutiu no fórum, para uma assembleia geral, extraordinária ou ordinária, em diálogo com o poder público.

Todas essas esferas de representatividade devem agir segundo Leis e Marcos Regulatórios da Representatividade, de incentivos à cultura nas esferas do poder público federal, estadual e municipal, caso, por exemplo, do Plano Nacional De Cultura, do Sistema Nacional de Cultura,e, do Plano Estadual de Cultura. Cada uma com regulamentações cronológicas, orçamentária efetivadas em áreas especificas segundo as descrições das ações e esferas de atuações definidas.

Todas essas instâncias de debates públicos se revelam pertinentes as condições previstas pela Lei Paulo Gustavo desde sua abertura para audiências públicas antes mesmo de ser sancionada. “Para receber os recursos da Lei, os municípios estão tendo de criar os seus sistemas municipais de cultura, os seus fóruns. Isso faz com que a sociedade civil tenha que participar, pois sem a sociedade civil, não existe o conselho e nem o sistema. O sistema ele é composto pela sociedade civil e pelo governo”, defende Fernando Cruz que está na coordenação do conselho.

De acordo com Fernando, mesmo prevendo a organização municipal e estadual dos Sistemas de Cultura, a Lei Paulo Gustavo permite o acesso nos municípios onde essas instâncias ainda não foram implementadas. “ A não existência de um sistema municipal não impede que os municípios não recebam os recursos da Lei Aldir Blanc. Mas, depois dos sistemas ser aprovado nacionalmente, os municípios vão ter que ter os seus conselhos para receber os recursos federais e estadual. É como o Sus. Tem uma fonte federal, uma fonte estadual e uma fonte municipal, mais a Lei Paulo Gustavo que é outra fonte de recurso. Então os municípios e estados terão uma fonte muito boa de dinheiro para investir na cultura. Mas para isso tem de ter os conselhos e sistemas porque tem que ter um plano de ação construído com a sociedade civil”, explica.

Audiência Pública no MIS. Foto: Letícia Monteiro

Considerada essencialmente democrática, a Lei Paulo Gustavo também é comemorada pela atenção a setores historicamente marginalizados. “E outra questão que está em jogo e que agora é necessária, além desses colegiados que já são constituídos, a necessidade de identificar os grupos mais endereçados pela Lei no artigo 17 que são as minorias. Populações indígenas, populações negras tradicionais, populações negras periféricas nas cidades. As mulheres negras que estão nas periferias, juventude preta que estão nas periferias. Comunidades nômades, população LGBTQIAP+, enfim. Para que elas também tenham acesso ao recurso para realizar as suas produções culturais. Porque essas populações têm manifestações culturais dentro das suas culturas”, explica Fernando.

“Queremos que esse recurso possa atender a todas e todos que trabalham com cultura, que fazem a cultura acontecer. É importante que essa lei tenha atenção à diversidade, que possa contemplar comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, mulheres, homens, não deixando ninguém de fora. Também temos que diminuir ao máximo a burocracia para o acesso a esse recurso e que isso seja feito com transparência”, afirmou o deputado estadual Pedro Kemp do PT, no início da auditoria pública ocorrida na ALEMS.

Foi com essa abertura que, em Campo Grande, a primeira audiência ocorrida na capital, revelou uma grande preocupação por parte dos diversos segmentos culturais e artísticos quanto a necessidade de desburocratizar os editais e dar acessibilidade a esses setores esquecidos. “A aldeia Jaguapiru. São três povos em uma aldeia, com mais de 20 mil indígenas. E nós não temos um espaço nosso. Um espaço de cultura, um espaço de laser onde nós podemos mostrar a nossa cultura, mostrar o nosso artesanato, mostrar os nossos cantos. Nós tentamos nos inscrever no edital do Fic, mas o que que acontece dentro da aldeia. As vezes a gente não tem tanto acesso a informação do que é preciso de forma clara, para a gente poder entrar e participar concorrendo nesses editais”, expôs Mirella Guarani da etnia guarani kaiowá representando os cerca de 20 mil habitantes da Aldeia Jaguapiru de Dourados.

Audiência na ALEMS. Foto: Giovanni Dorival

Demandas como as de Mirella, apresentadas nas auditorias dos diversos municípios de Mato Grosso do Sul, tem resultado em maior envolvimento por parte de instituições como a Procuradoria-Geral do Estado que anunciou o apoio e segurança jurídica para que os municípios possam criar editais com acessibilidade permitindo que as minorias possam acessar os recursos da Lei. “O Estado se preocupa em ouvir a sociedade para que tenhamos maior segurança na implementação da Lei. Vamos garantir apoio jurídico para que isso chegue aos municípios e entidades da área. A PGE também estará à disposição para auxiliar na construção de planos de trabalho para submissão dos pedidos”, declarou o procurador João Claudio dos Santos, que é chefe da Coordenadoria Jurídica da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (CJUR/FCMS).

Já na segunda audiência realizada na noite desta sexta-feira (12), no Museu da Imagem e Som (MIS) dentro da Fundação de Cultura do Estado (FCMS), Silvana Valu que representou a instituição abriu o diálogo considerando o foco participativo da Lei Paulo Gustavo. “Temos que montar o nosso plano de ação. E a gente sabe que isso só pode ser feito se houver uma escuta pública. Esse plano de ação só pode ser construído junto com os artistas, junto com a classe artística”, esclareceu.

Para os produtores culturais do estado, é tempo de retomar a tradição da participação nos debates democráticos e reassumir o protagonismo da própria história junto ao Governo. “Nós temos o Sistema Estadual de Cultura que é um dos primeiros do país, também. Temos o fórum municipal, o conselho municipal e o sistema Municipal de Cultura de Campo Grande que é o segundo criado no país, quando foi criado o Sistema Nacional”, recorda Fernando.

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