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O Antropólogo Victor Ferri Mauro e os povos originários de MS

Professor de Ciências Sociais da UFMS fala sobre as influências e perspectivas para os Povos Originários no estado

Especialista em Antropologia das Culturas e História dos Povos Indígenas pela UFMS[i], e, mestre e doutor em História pela UFGD[ii], o professor Victor Ferri Mauro, aproximou-se das comunidades indígenas há cerca de 19 anos, quando se tornou servidor do quadro permanente da FUNAI[iii] entre 2004 e 2009.

Nascido em São Paulo, Victor cresceu na cidade do interior paulista chamada Serra Negra e radicou-se em Mato Grosso do Sul há quase duas décadas onde seguiu atuando em áreas ligadas aos povos indígenas, após o período pela FUNAI.

Como docente nos cursos de Jornalismo, História, Ciências Sociais, Psicologia, Artes Visuais, e, no mestrado em Antropologia Social da UFMS, o antropologo tem desenvolvido e orientado estudos e pesquisas sobre populações indígenas brasileiras na graduação e na pós-graduação. Em 2017 e 2021, Victor atuou como professor formador nos cursos de especialização em Antropologia e História dos Povos Indígenas e de Ensino de Sociologia ofertados pela UFMS.

Membro dos colegiados do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social e do bacharelado em Ciências Sociais da UFMS, além de sócio efetivo da Associação Brasileira de Antropologia e líder do diretório de pesquisa OPINE[iv], Victor já esteve com personalidades de destaque como o cacique Raoni, liderança de vulto nacional pelos direitos dos povos originários no Brasil.

Nesta entrevista, o professor e antropólogo fala sobre sua experiência e os possíveis impactos da Bioceânica e do Marco Temporal para os povos originários de Mato Grosso do Sul.

Pesquisador indigenista Victor Ferri Mauro. Imagem: Giovanni Dorival

Giovanni Dorival: Oi, Victor. Tudo bem?

Victor Ferri Mauro: Olá.

Giovanni Dorival: Podemos começar a nossa entrevista?

Victor Ferri Mauro: Olá Geovanni.

Giovanni Dorival: Como se deu sua vinda para o MS?

Victor Ferri Mauro: Eu era servidor da Funai em Brasília e pedi transferência para Campo Grande e depois para Dourados, onde fui fazer o mestrado em História. Então ingressei como professor da UFMS no campus de Naviraí e fui fazer o doutorado em História Indígena também na UFGD.

Giovanni Dorival: Em 2016?

Victor Ferri Mauro: Concluí em 2016. E agora estou fazendo pós-doutorado em Estudos Culturais pela UFMS no campus de Aquidauana.

Giovanni Dorival: Puxa! Que bacana! Em que ano chegou ao estado?

Victor Ferri Mauro: Cheguei em 2007. E nunca mais saí.

Giovanni Dorival: Certo. Victor, de onde surgiu o interesse nas comunidades dos povos originários?

Victor Ferri Mauro: Quando eu fazia graduação em Ciências Sociais no início dos anos 2000 tive o primeiro contato com a temática indígena durante as minhas aulas de antropologia, mas fiz a minha iniciação científica pesquisando o crescimento de atividades não agrícolas no meio rural brasileiro. O interesse pelos povos indígenas cresceu quando fui trabalhar na Funai.

Giovanni Dorival: E, como foi seu envolvimento com as aldeias dentro do Mato Grosso do Sul?

Victor Ferri Mauro: Começou também nos tempos da Funai. Eu viajava para as aldeias para fazer diagnósticos locais e prestar assistência.

Giovanni Dorival: Como era fazer esses diagnósticos?

Victor Ferri Mauro: Ia nas aldeias averiguar as necessidades dos indígenas quanto às políticas públicas que os atendiam.

Giovanni Dorival: Que tipo de assistência era prestada?

Victor Ferri Mauro: Regularização territorial, projetos agrícolas, distribuição de cestas básicas, auxílio para estudantes, encaminhamento de indígenas para atendimento previdenciário, jurídico, em saúde etc.

Giovanni Dorival: Entendi. Você já citou que se interessou por pesquisar sobre os povos indígenas na faculdade. Qual a relação entre território e identidade para os povos originários?

Victor Ferri Mauro: Total. A ocupação dos territórios tradicionais é imprescindível para a reprodução física e cultural dessas comunidades.

Giovanni Dorival: Estamos fechando a Semana do Meio Ambiente. Qual a importância da manutenção das comunidades indígenas para o ecossistema?

Victor Ferri Mauro: As sociedades indígenas têm uma relação com o meio ambiente natural mais direta e mais intensa do que aquela que a nossa sociedade mantém. Suas atividades econômicas, culturais, cosmológicas, religiosas se vinculam fortemente com o manejo sustentável dos biomas que habitam. E, de fato, os dados científicos mostram que as Terras Indígenas no Brasil são as áreas que melhor conservam a floresta.

Giovanni Dorival: Entendi. O Mato Grosso do Sul é o segundo estado em população de povos originários no país, as questões de posse de terra têm afetado esse número?

Victor Ferri Mauro: Demais. 99% da superfície das Terras Indígenas demarcadas atualmente se concentra na região da Amazônia Legal. Os povos indígenas das regiões Centro-oeste, Sul, Sudeste e Nordeste são os que mais estão confinados territorialmente.

Giovanni Dorival: Saberia dizer quais são as etnias presentes no estado?

Victor Ferri Mauro: Pelo que me consta existem os Atikum, Camba, Guarani-Kaiowá, Guarani-Nhandeva, Guató, Kinikinaw, Kadiwéu, Ofaié e Terena.

Giovanni Dorival: Em entrevista para o livro-reportagem Belo Sul Mato Grosso: um percurso sobre arte e cultura em MS, você esclarece que costumes como o churrasco e o próprio tereré, que são marcas do estado tem origem nas práticas dos povos originários. Que outros legados essas etnias tem acrescido a cultura e a identidade do estado?

Victor Ferri Mauro: Os povos originários estavam aqui antes dos colonizadores chegarem. E hoje ainda são numerosos. Suas influências estão por todos os lados: nos sotaques, nos fenótipos, na culinária, na arte, nos costumes. Nas crenças e na religiosidade também.

Victor com o cacique Raoni. Foto: Arquivo Pessoal

Giovanni Dorival: Quais as maiores demandas para a sobrevivência dos povos originários no estado?

Victor Ferri Mauro: A regularização dos territórios tradicionais é a principal delas, porque dela dependem outras condições para proporcionar melhoria na qualidade de vida das comunidades. Os povos indígenas no Brasil hoje em dia são carentes de muita coisa: saúde, educação de qualidade, infraestrutura, assistência técnica rural, acesso à tecnologia, segurança alimentar, vigilância e proteção territorial etc.

Giovanni Dorival: A Rota Bioceânica é uma realidade cada vez mais concreta dentro do estado. Que impactos poderemos esperar para as comunidades indígenas nas regiões de percurso da Bioceânica?

Victor Ferri Mauro: Certamente o fluxo de pessoas e veículos circulando por ali vai aumentar bastante. Com isso podemos inferir que vai aumentar a poluição sonora e atmosférica, o atropelamento de animais da fauna silvestre, talvez intensifique a disseminação de doenças transmissíveis.  Não tenho conhecimento profundo desse cenário, mas sei que os possíveis impactos socioambientais para a população afetada precisam ser muito bem analisados antes de se autorizar a consecução de um empreendimento como esses.

Giovanni Dorival: — Qual seria o melhor caminho para prevenir impactos negativos da Rota, como o aliciamento sexual dentro de aldeias descoberto no início do ano, na tragédia dos Ianomâmis?

Victor Ferri Mauro: Tem que haver programas sociais que atendam as populações mais carentes, além de campanhas de conscientização para o problema. A fiscalização precisa ser redobrada e culminar em punição para quem pratica ou promove esse tipo de delito.

Giovanni Dorival: — Qual seria a melhor política, na implementação da Rota para garantir uma economia autossustentável com desenvolvimento e progresso para os povos originários sem prejudicar a cultura e modo de vida de cada etnia?

Victor Ferri Mauro: Como não estudei esse caso específico, não tenho como opinar no que efetivamente precisa ser feito. O que é fato é que um empreendimento de grande monta como esse, com potenciais impactos socioambientais, não pode ser implantado sem ouvir a população afetada e mensurar suas consequências. Dessa oitiva é que surgem as ideias para se fazer um planejamento mais responsável das ações, sempre com acompanhamento técnico de profissionais habilitados. Os representantes das comunidades indígenas devem participar das deliberações em todas as etapas do processo.

Giovanni Dorival: Entendi, professor. Essa semana ainda vimos debates sobre o Marco Temporal que teve julgamento no STF adiado. Que impactos podemos esperar caso seja estabelecido o Marco Temporal para as comunidades indígenas dentro do estado?

Victor Ferri Mauro: Creio que o Marco Temporal só poderia ser estabelecido por meio de alteração na Constituição através de uma PEC. Se isso acontecesse seria desastroso para os povos indígenas de MS, que vivem uma situação de circunscrição territorial das mais precárias no Brasil.

Giovanni Dorival: Quem seriam os mais beneficiados pelo Marco Temporal?

Victor Ferri Mauro: Seriam agentes que possuem disputas de interesse territorial com comunidades indígenas.  Algumas delas que se arrastam por décadas sem uma conclusão. Há o temor de que Terras Indígenas já homologadas possam ter o processo revisto por decisão judicial.

Giovanni Dorival: Por que é tão difícil implementar uma política social que acolha e trate das demandas dos povos indígenas?

Victor Ferri Mauro: Os povos originários estão presentes em todas as unidades da federação e a sua diversidade cultural é muito ampla. Isso requer a elaboração de políticas públicas que contemplem especificidades que são bastante complexas. Mas eu penso que o Brasil precisa finalmente priorizar o atendimento das demandas das populações indígenas, o que depende também de boa vontade política.

Giovanni Dorival: Por que tem sido tão difícil solucionar e implementar uma política de demarcação de terras?

Victor Ferri Mauro: Isso ocorre, principalmente, por causa da judicialização das disputas e da tramitação dos processos que vem sendo demasiadamente morosa. No passado o Poder Público, por ação ou omissão, permitiu a apropriação de territórios indígenas tradicionais por agentes privados, gerando uma situação que se tornou complicada de reverter, pois sempre ocorrem contestações na esfera judicial, ainda que a atual Constituição seja bastante avançada no que tange aos direitos territoriais dos povos originários.

Giovanni Dorival: Você acredita que as comunidades indígenas de MS têm chances de continuar presentes no estado por mais tempo diante das políticas e disputas que tem ocorrido?

Victor Ferri Mauro: Os povos indígenas sempre acionam as suas estratégias de resistência.  Não é à toa que persistem com suas especificidades, apesar do todos os percalços que enfrentam há mais de 500 anos.

Giovanni Dorival: Você diria que se reconhece como sul-mato-grossense a partir do contato e dos hábitos que vem como como herança dos povos originários no estado?

Victor Ferri Mauro: O Mato Grosso do Sul é o lugar que eu escolhi para viver e onde eu fui bem acolhido e me sinto bem. A adaptação foi muito rápida, talvez porque eu venha de um estado vizinho e porque eu já tivesse familiares (tios e primos) vivendo aqui há mais tempo. A herança cultural das tradições indígenas em Mato Grosso do Sul é bastante patente, e os indígenas estão por todo lugar que a gente percorre. Isso proporciona uma experiência de vida bem enriquecedora para quem está imerso nela.

Giovanni Dorival: Quem era e quem é, hoje, Victor Ferri Mauro depois de quase duas décadas em MS?

Victor Ferri Mauro: A minha vida se tornou muito melhor depois que me mudei para o Mato Grosso do Sul. Aqui me enraizei e criei identidade. Hoje me sinto mais sul-mato-grossense do que paulista. E aqui neste estado pretendo dar continuidade à minha vida.

Giovanni Dorival: Puxa, Victor. Muito obrigado

Victor Ferri Mauro: Valeu!

 

 

 

 

Notas:

[i] UFMS — Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

[ii]UFGD — Universidade Federal da Grande Dourados

[iii] FUNAI — Fundação Nacional dos Povos Indígenas

[iv] OPINE — Observatório da Política Indigenista de Estado.

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