Hobbes, Marco Temporal e…
… A “Paz No Campo”?
Desde a última semana de maio, quando a câmara dos deputados resolveu aprovar o projeto de Lei (PL) 490/07, chamado Marco Temporal que estabelece demarcação de terras para os povos originários mediante comprovação de que as etnias indígenas que reivindiquem alguma área como sua, tenha de comprovar que estava no local antes da promulgação da Constituição Federal em 5 de outubro de 1988 diversas controvérsias têm ganhado espaço na mídia e nas redes sociais.
Enquanto os deputados, principalmente aqueles ligados a chamada bancada rural, formada sobretudo por conservadores e aliados ao ex presidente Bolsonaro, apressaram a votação com evidente temor da decisão que está em julgo no Supremo quanto a constitucionalidade da PL, setores de proteção ao meio ambiente e entidades ligadas as causas indígenas denunciam o Marco Temporal como forma judicializada de apropriação indébita das terras indígenas e de abrir caminhos para uma maior degradação do ecossistema protegido justamente pela presença desses povos, um fato amplamente comprovado.
Embora reconhecida no caso especifico do Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil de 2009, o Marco Temporal, também chamado Teoria de Copacabana é apontado por juristas como projeto em flagrante contravenção com a Constituição Federal que prevê a demarcação de terras ancestrais dos povos originários. Isso porque, o Marco Temporal tem a prerrogativa de inviabilizar as demarcações ao ignorar as violações que as etnias indígenas sofreram ao longo da história, como as migrações forçadas, o morticínio sistemático de aldeias inteiras e, sobretudo, a política de apropriação forçada por ruralistas com apoio dos governos da Ditadura que é acusada de praticar extermínios de povos originários durante sua vigência.
Contudo, longe de dar atenção as denúncias, os representantes dos interesses de ruralistas que há cerca de 4 anos deixaram de figurar no Brasil e no mundo como protetores do meio ambiente para se tornar verdadeiros carrascos a partir dos diversos incêndios criminosos e dos casos de grilagem ocorridos em meados de 2021, a bancada ruralista segue pressionando pela aprovação do projeto no senado e combatendo o julgamento que transita no STF.
Segundo estado com a maior população indígena do país, Mato Grosso do Sul é uma área de constante disputas de terras entre ruralistas e etnias remanescentes de períodos que se perdem no tempo e que deixaram grandes influências culturais aos sul-mato-grossenses. Não obstante, membro da ala ruralista, um deputado do estado chegou a declarar, logo após a aprovação na Câmara que o Marco era garantia de “paz no campo”. Mas, que paz?
A paz de Nero que tocava sua harpa durante o incêndio que matava famílias inteiras em Roma, pensando no seu projeto de revitalização da cidade? A paz dos monarcas absolutistas que criavam leis desmedidas de apropriação de riquezas por pesados encargos de impostos aumentando o número de miseráveis enquanto viviam na abastança? A paz dos senhores e sinhás que fizeram a fortuna neste país à custa do suor, saúde, sangue e vida de centenas de milhares de negros escravizados nesta pátria mãe gentil? Ou, quiçá, ainda, a paz dos nazifascistas que festejavam ao som das canções de Zarah Leander ou ouviam com espirito de profunda beatitude e graça a Nona Sinfonia de Beethoven com os olhos fixos e indiferentes aos judeus, ciganos e homossexuais que morriam sufocados nas câmaras de gás ou nos paredões de execução?
De fato, não sabemos. Apenas vemos. Vemos a falta de diálogo com a sociedade e com os representantes das causas ambientais e dos povos originários. De um lado o discurso polido sinalizando um interesse pela causa e que raramente se mede em atos governistas. De outro. Bem, apenas é possível deduzir que, apesar de Thomas Hobbes (1588-1679), em sua defesa da monarquia passar para a história como um dos gênios do Contratualismo que defende a necessidade de autarquias regendo as relações e os direitos dos homens para evitar a barbárie, o que vemos é a prevalência do estado de natureza capitulado pelo capitalismo selvagem, onde setores predatórios hegemônicos formam um pacto social entre si e se utilizam do próprio contrato social — no caso do Marco Temporal, das leis —, para dar continuidade ao ditado de Plauto (254-184 a.C.), popularizado a partir do Leviatã, de Hobbes: “o homem é lobo do homem”.