Caderno BColunistasGiovanni Dorival

Das Palavras A Violência: Os discursos que ameaçam a vida dos LGBTQIAP+

Meio de autopromoção, discurso conservador de extrema-direita é aval para perseguir e matar minorias

Em 2002, após ler um manuscrito dramático de minha autoria tendo como pano de fundo o HIV, Maria Du Carmo, uma amiga que, na época, passava pela casa dos 60 anos de existência bem apreendida, me advertiu: “Você escreve muito bem, mas precisa pensar no porquê escreve, porque as palavras são como uma espada, podem combater o mal ou podem ferir inocentes”.

Guardei as palavras, claro! Mas, somente ao longo das experiências, da observância da sociedade e dos estudos constantes é que percebi o quão grave e profundo era o ensinamento da boa Du Carmo. Tanto que, ao longo de milênios, diversos filósofos e sociólogos se dedicaram as pesquisas sobre as palavras e seus efeitos na vida individual e coletiva dos homens.

É o caso, por exemplo de alguns trabalhos do filósofo francês, Michel Foucault[i] (1926-1984) que, a grosso modo, aponta as palavras, as definições e os discursos que partem de uma entidade, de uma personalidade mais ou menos relevante, como dispositivo regulador das ações e pensamentos humanos. Caso que se pode verificar na persistência da chamada ideologia de gênero na qual insistem certos religiosos e políticos conservadores, mesmo provado que não passa de fantasia, irrealidade ou, de modo mais certeiro, de uma fake news. Mas, por que eles insistem nessa mentira?

Uma das hipóteses mais pertinente para a persistência em tal ideia, é a necessidade de se fazer necessário aos olhos de seus eleitores ou de manter o controle sobre seus seguidores partidários e religiosos. Funciona como a propaganda de qualquer produto criado para dar lucro aos donos de uma marca. Inicialmente, se cria um problema para a vida cotidiana do consumidor que, em muitos casos, sequer existia. Depois, se oferece um produto que pode solucionar o problema que a própria marca inventou como sendo o único capaz de resolver aquela (falsa) dificuldade.

Ao longo da história, isso pode ser verificado em muitos períodos. Para que houvesse a instituição da sociedade feudal com servos conformados a exploração do trabalho pelo senhor de terras durante a Idade Média, foi criado um discurso de fundo religioso segundo o qual “Deus quis que, entre os homens, uns fossem senhores e outros servos de tal maneira que os senhores estejam obrigados a venerar e amar a Deus, e que os servos estejam obrigados a amar e venerar o seu senhor…”[ii]

Essa foi, basicamente, a mesma lógica que permitiu ao branco escravocrata dormir de consciência tranquila enquanto mantinha pessoas negras sob as mais vis condições de subserviência e violência nas senzalas. Tudo, parte da difusão da palavra, que em si, agrega uma ideia, um conceito, uma chave sobre o modo de ser e pensar aceitáveis.

De acordo com Foucault, ao se estabelecer como um dos dispositivos de poder no século XIX, a psiquiatria e a psicologia se tornam o órgão regulador do que é e do que não é normal, tendo, de início, categorizado as expressões sexuais fora da heteronormatividade como anormal[iii], de modo a legalizar as persecuções e uma série de violências psicossociais, simbólicas e físicas contra aqueles que escapam da normatividade imposta.

Durante a ascensão do nazi fascismo alemão, Adolf Hitler se aproveitou de algumas ideias pseudo cientificas, criando um discurso xenofóbico e vitimista para o povo alemão de modo a se vender como herói. O primeiro passo foi a concepção de um dos mais (senão o mais) famigerados livros da História da Humanidade, o Main Kampf, que (assim como certos delírios de um falecido autor teórico de ficções pseudo filosóficas brasileiro), difundia a ideia inverossímil de degeneração da espécie humana a partir de um avanço comunista judeu, da miscigenação de raças com consequências na economia, na educação, na saúde, na moralidade e na própria sobrevivência da espécie humana.

Considerando os conceitos de Foucault sobre as tecnologias disciplinares com seu uso institucionalizado para docilizar os corpos, vemos, já sem tanta perplexidade, que o discurso sistemático da propaganda nazi fascista de Hitler foi extremante efetivo para imbuir na sociedade alemã um completo desprezo pela vida dos grupos que padeceram as maiores atrocidades da história dentro dos campos de concentração. Fato evidenciado em muitos retratos de cidadãos que mesmo no seio do holocausto surgem rindo e confraternizando indiferentes as torturas de judeus, ciganos e outros grupos perseguidos. É precisamente o que buscam aqueles que insistem em atacar as minorias de hoje com enredos fictícios sobre gênero e ética. Daí, por exemplo, os constantes ataques a diversidade sexual e as identidades de gênero sob a mentira da existência de uma “ideologia de gênero”.

Segundo os delírios hitlerista ou nazi fascista, a existência de pessoas diferentes ao que era normatizado (portadores de síndrome de down, corcundas, gays, lésbicas) eram parte das consequências da degeneração da espécie humana a partir da miscigenação com raças inferiores (judeus, ciganos e negros). Sua ascensão ao poder partiu exatamente desse estratagema de marketing segundo o qual ele, e apenas ele, conhecia o caminho para livrar a sociedade do mal que ele mesmo criou a partir de conceitos e discursos mentirosos, sem qualquer vínculo com a realidade. Pratica ainda copiada por políticos de extrema-direita no Brasil e mundo afora.

“No cenário nacional, partidários da extrema direita agem para legalizar formas de coibição das expressões de gênero em lugares públicos e para reverter direitos conquistados com anos de resistência e sofrimento”

De fato, é impossível não reparar que tais agentes do cenário político, não tenham alcançado e se mantido em evidência senão por seus discursos esdrúxulos e pela tentativa constante de eleger grupos da minoria como inimigos da sociedade. Negando a realidade desses grupos que já sofrem, ao longo de milênios, com a violência física e psíquica persecutória, esses extremistas conservadores os acusam de preguiça e entrave as necessidades econômicas do sistema capitalista (caso dos negros e indígenas) e de degeneração da moral, da espécie humana segundo uma interpretação criada a partir de algum livro sagrado como o alcorão ou a bíblia cristã para atender a seus interesses (caso daqueles que nascem sob uma ou mais expressão de gênero identificados ou por se descobrir da sigla LGBTQIAP+).

Embora fantasiosos, nenhum desses discursos permanecem livre de ações decorrentes. No caso do nazi fascismo, viabilizou a sistematização legalizada das mais abjetas formas de violência contra homens, mulheres e crianças judias, ciganas, miscigenadas. No cenário nacional, partidários da extrema-direita agem para legalizar formas de coibição das expressões de gênero em lugares públicos e para reverter direitos conquistados com anos de resistência e sofrimento, caso, por exemplo, de projetos que buscam inviabilizar ou impedir o acesso à Parada Da Diversidade, ao banheiro unissex, a competição esportiva conforme a identidade de gênero e a educação para o respeito e compreensão da sexualidade nas escolas.

Assim, também agem para que o Brasil permaneça no topo dos países que mais matam transexuais, gays e lésbicas graças ao discurso de ódio moralista e conservador que mente sistematicamente ao insistir na ideia de que a heteronormatividade está ameaçada por uma “ideologia de gênero” em curso. Não existe, nem nunca existiu ideologia de gênero, mas, expressões e identidades de gênero que constituem a essência do indivíduo que encontra na própria Constituição Federal, o amparo legal do seu direito de ser e existir. O que existe é uma necessidade urgente de uma educação realmente esclarecedora sobre a diversidade e que combata o preconceito que leva a morte.

Para uma sociedade de paz e equidade de direitos, é urgente que esses discursos e os motivos malignos por trás deles sejam, todavia, desmascarados e, nos casos de comprovado crime, exemplarmente penalizados. Como bem exemplifica o discurso infundado contra o sistema eleitoral brasileiro proferido pelo ex presidente Jair Bolsonaro, que foi punido com a inelegibilidade nessa sexta-feira (30).

 

Notas:

[i] A História da Loucura (1961), As Palavras E As Coisas (1966), A Arqueologia do Saber (1969), Os Anormais (1975), História da Sexualidade (1976), e, O Nascimento da Clínica (1979), entre outros compêndios que seguem influenciando pesquisas, caso do trabalho do professor e antropólogo Guilherme Passamani.

[ii] St. Laud de Angers citado por Gustavo de Freitas em 900 Textos e Documentos de História. 2ª ed. Lisboa, Plátano, 1977, vol. I, p, 45.

[iii] A diversidade sexual fazia parte da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionadas a Saúde – (CID). Somente em maio de 1990, a classificação foi retirada da lista pela Organização Mundial de Saúde (OMS), apesar disso, no Brasil, somente 9 anos depois, em março de 1999, o Conselho Federal de Psicologia considerou, a partir da resolução nº 001/99, que a Homossexualidade não constitui doença ou distúrbio, e que a sexualidade de cada indivíduo e a forma como cada sujeito a vive faz parte de sua própria identidade

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