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Guilherme Passamani: as pesquisas de gênero e o mês do Orgulho LGBQIAP+

Professor e antropólogo reflete sobre a história, resistência e conquistas da diversidade

Nascido em 10 de janeiro de 1983 no município de Alegrete, RS, terra de Mario Quintana, Guilherme Rodrigues Passamani peregrinou por vários lugares como Coimbra, Barcelona, Campinas, São Paulo, Boulder e Lisboa. Mas, foi como antropólogo e professor da UFMS que encontrou, em Mato Grosso do Sul, seu lugar.

Chegou no dia 09 de setembro de 2009, com duas malas de roupas e muitos sonhos, quando tomou posse como professor da carreira do magistério superior na Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, UFMS, estabelecendo-se incialmente em Corumbá e Naviraí. “Um guri de 26 anos. Zebra total. Primeiro concurso. Parcelei a passagem da Azul em 10X. Um investimento imenso: custou R$ 498,00. Era supercaro há treze anos”, descreve em uma publicação na rede social.

Naquele tempo o jovem catedrático confundia a capital do MS, sem saber se era Cuiabá ou Campo Grande. “Acho que nunca tinha parado para pensar sobre o Centro-Oeste do Brasil. Resultou que vim ser mais um filho do estado do Pantanal”, confessa na mesma publicação.

Hoje, há quase 14 anos no estado, Guilherme tem em Campo Grande o seu lar para onde sempre volta das jornadas de estudos e pesquisas mundo afora, com declarações públicas de afeto. “Preciso confessar, que foi em um arraial, bem no centro do oeste do Brasil, que eu encontrei conforto e cheiro de casa. Falo do Arraial de Santo Antônio de Campo Grande da Vacaria. Minha Big Field. São quase sete anos de intenso afeto trocado. De lutas. De militância. De trabalho. De madrugadas e mais madrugadas. Campo Grande é uma delícia”, publicou em 28 de agosto de 2022 pelo aniversário da cidade ressaltando a presença de coronéis, do agronegócio e do fundamentalismo religioso na região.

“Campo Grande é das gentes simples e interessantíssimas que vieram de todos os lugares assentar morada aqui no quintal do mundo. O quintal mais lindo do mundo. Campo Grande das pessoas queridas que já estão no meu coração. Campo Grande dos meus alunos, que me enchem de esperança em tempos tão adversos. Campo Grande é poesia de Manoel de Barros encravada entre o cerrado e o Pantanal. Um arraial brotado na terra vermelha de braços largos e abertos a abraçar e agradecer ao mundo que o contempla”, declarou, ainda.

Professor da UFMS, Guilherme encontrou na capital do MS seu lar. Foto: Arquivo Pessoal

Com longo currículo acadêmico desde que se graduou em Ciências Sociais e História nas habilitações de licenciatura e bacharelado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), incluindo participações como pesquisador visitante na Universidade de Coimbra (Portugal) entre 2007 e 2008 e, na Universidade do Colorado – Boulder (Estados Unidos) entre 2014/2015, o doutor em Ciências Sociais na área de Estudos de Gênero pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Guilherme Passamani, é também, experiente na área da pesquisa antropológica.

Tendo como os principais temas de pesquisa a antropologia urbana (cidade e festas populares); o gênero e sexualidade (trabalho sexual de homens, trabalho sexual em contextos transnacionais, migrações e mobilidades), o professor é autor de diversos livros sobre gênero e sexualidade como O arco-íris (des)coberto (EdUFSM); Na batida da concha: sociabilidades juvenis e homossexualidades reservadas no interior do Rio Grande do Sul (EdUFSM) e Batalha de Confete. Envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de visibilidade no Pantanal-MS (Papéis Selvagens Edições).

Pessoa tão rigorosa quanto carismática, com a qual tive oportunidade de estudar durante a minha graduação em Jornalismo, Guilherme não faz questão de esconder a própria sexualidade. Às vezes, no entremeio das aulas também se abria para falar de curiosidades e momentos íntimos vividos nos intervalos de algumas pesquisas antropológicas, caso de uma desilusão amorosa que o teria levado as lágrimas as margens do Rio Paraguai durante o período em que trabalhou nas investigações sobre o envelhecimento do homossexual pantaneiro. Nessa entrevista, o antropólogo professor fala um pouco dessa trajetória e sobre as questões de gênero que estiveram presentes em suas pesquisas e nos debates do mês de junho que celebrou o Orgulho da Diversidade.

Giovanni Dorival: Olá, Guilherme!

Guilherme Passamani: E aí, querido. Estou a postos

Giovanni Dorival: Podemos começar, então?

Guilherme Passamani: Uia! Acho que podemos. Medo!

Giovanni Dorival: (Risos). Vai ser tranquilo!

Guilherme Passamani: Bora!

Giovanni Dorival: Ok. Quero começar com sua situação pessoal. Casou desde que nos vimos pela última vez?

Guilherme Passamani: Certo. Se eu casei? Eu tive um relacionamento até 2019.

Giovanni Dorival: Ah, sim. Foi na época que ministrou a disciplina sobre Foucault, certo?

Guilherme Passamani: Eu não tenho bem certo, mas acho que sim. Ficamos juntos até meados de 2019.

Giovanni Dorival: Eu lembro que você chegou a comentar no entremeio da aula. Aliás, uma disciplina maravilhosa

Guilherme Passamani: (Risos). Minha cara fazer isso. Eu gostei muito de ministrar aquela disciplina.

Giovanni Dorival: Consegui dez no trabalho final de outra disciplina ministrada pelo seu colega, o professor Asher, utilizando a experiência com Foucault. Muito obrigado!

Guilherme Passamani: Ele é um professor incrível. Que massa. Muito bom.

Giovanni Dorival: Guilherme, o que o despertou para as questões de gênero?

Guilherme Passamani: Nossa! Muito antiga essa decisão. Mas tenho certeza que foi ter visto dois homens de mãos dadas e depois se beijando no ônibus da faculdade, nos meus primeiros dias como estudante universitário. Eu tinha 19 anos e nunca tinha visto algo assim na minha cidade. O ano era 2002. Eu entrei, na verdade, pelos estudos de sexualidade. Depois fui chegando no gênero.

Giovanni Dorival: Entendi. Seria uma forma de compreender, também, a própria sexualidade?

Guilherme Passamani: Isso não foi consciente e imediato. Mas certamente sim. Hoje entendo isso de forma mais clara. Foi um jeito de me compreender melhor, claro!

Giovanni Dorival: Entendo. Além de ativo pesquisador e autor de livros sobre as questões de gênero, você também integra o Núcleo de Estudos Néstor Perlongher, o NENP. Quem foi Néstor e qual a importância de organizações como o Núcleo?

Guilherme Passamani: Néstor Perlongher foi um antropólogo argentino, além de poeta sofisticado e contestador. Um homem de esquerda, que se exilou no Brasil durante a última ditadura argentina e, no Brasil, morreu no começo dos anos de 1990 vítima de complicações da AIDS. Foi pioneiro nos estudos sobre prostituição masculina e professor do departamento de antropologia da Unicamp, onde fizera mestrado. Um núcleo de estudos é um espaço muito potente das universidades. Ali são pensadas pesquisas, elaboradas reflexões, construção de conhecimento coletivo. É uma parte muito prazerosa da vida na universidade.

O antropólogo com membros do NENP. Foto: Arquivo Pessoal

Giovanni Dorival: Ela contribui para debates e avanços nas questões que são abordadas?

Guilherme Passamani: Claro que sim, porque as pesquisas e seus resultados preliminares circulam entre todos os pesquisadores envolvidos. As questões, assim, tendem a ser mais amadurecidas. Eu acredito na produção cooperativa do conhecimento. A gente tem conseguido fazer isso no NENP.

Giovanni Dorival: Guilherme, em 2011 você publicou um artigo sobre pesquisa realizada nas escolas de Santa Maria, RS, revelando dificuldades de abordagem nas questões de sexualidade por parte dos educadores. Pode nos falar sobre a importância de se ter esse preparo?

Guilherme Passamani: Os temas de gênero e sexualidade, embora sejam questões muito públicas, são moralmente tratados como privados. Em vista disso, não se discutia nada disso na universidade, em cursos de formação de professores. A opção sempre foi não se falar. Primeiro porque seria do âmbito privado; segundo porque não se tinha formação para falar de forma qualificada sobre o tema. Penso que de lá para cá muita coisa mudou. Mas não sei se há muito mais preparo para enfrentar esses temas nas salas de aula, porque não percebo mudanças morais significativas nos olhares sobre gênero e sexualidade. Pelo contrário, houve retrocessos.

Giovanni Dorival: Falar sobre questões de gênero no âmbito educacional se tornou um grande campo minado, especialmente pela ação de conservadores políticos que insistem na ideia de que há uma doutrinação e ideologia de gênero. Por que isso acontece?

Guilherme Passamani: Porque interessa a uma fração conservadora da sociedade, provocar pânicos morais, quando a sociedade está avançando em termos de se tornar mais plural e questionar os valores conservadores hegemônicos. No fundo, há uma grande cortina de fumaça sobre esse tema.

Giovanni Dorival: Qual a importância de se ter um ensino com um olhar para a diversidade sexual e para as identidades de gênero?

Guilherme Passamani: Eu penso ser fundamental, pois as diferenças sexuais e de gênero, as dissidências sexuais e de gênero sempre estiveram em todos os espaços, mas precisavam ser silenciadas e invisibilizadas, negadas, porque eram percebidas como crime, doença e pecado. Essas pessoas eram pessoas de segunda categoria. É alargar as vidas vivíveis. Por isso precisamos avançar nesses debates.

Giovanni Dorival: De que forma o patriarcado se apresenta como viabilizador das fobias de gênero sobre a diversidade?

Guilherme Passamani: Eu não sei dizer isso categoricamente. O que sei é que historicamente o patriarcado foi um sistema muito nocivo para todos os que não eram os homens brancos e ricos. Esses efeitos não terminam com a derrocada desse sistema. Um imaginário patriarcal paira sobre o nosso tempo, infelizmente.

Giovanni Dorival: Ao longo da História, ocorreram diversas rebeliões pela causa gay, como a de Tessalônia, na Grécia, por volta de 388 da Era Comum, contra uma lei de restrição; os motins numa “casa de maricas” na Inglaterra durante o século XVIII; e o de 1966, por frequentadores de bares como a Taverna do Gato Preto. Por que justamente o de Stonewall em 28 de junho de 1969 se tornou o marco das lutas e do Orgulho Gay?

Guilherme Passamani: Então, a partir do que eu estudei em Foucault, eu não consigo compreender a homossexualidade como um fenômeno transistórico. O homossexual teria sido uma categoria médica, da psiquiatria, criada no século XIX[i]. Portanto, por esta perspectiva, antes disso, não haveria um sujeito homossexual, mas sim práticas homossexuais. Portanto, eu não entendo que antes do século XIX existam homossexuais ou homossexualidade. Mas práticas sexuais entre pessoas de um mesmo sexo biológico. Toda uma construção identitária que constitui um sujeito, não consigo compreender.

Giovanni Dorival: Entendo. Mas, mesmo dentro dessa lógica, por que justamente o de Stonewall em 28 de junho de 1969 se tornou o marco das lutas e do Orgulho Gay?

Guilherme Passamani: Penso que Stonewall se tornou relevante porque, nos Estados Unidos, já era palco de uma série de outras “rebeliões”. Havia um contexto de transformações nos Estados Unidos e na Europa, apenas para ficar em dois contextos. A Revolução Cultural na China também. Quer dizer, tinha um contexto. A pujança norte-americana é um fator sem dúvidas a se considerar. Não dá para esquecer da morte do ícone da “cultura gay da época”, Judy Garland. Ela se suicidara em Londres e depois foi transladada para N.Y. Isso provocou uma enorme comoção, que fez mudar completamente o contexto do bairro em que estava o bar. Essa situação inusitada e particular fora o disparador. A gota d’água para um fenômeno maior, que era a discriminação das pessoas LGBT.

Giovanni Dorival: Entendo. Mesmo agora, após a derrota de Bolsonaro, que é frequentemente apontado como influenciador de discursos de ódio contra as minorias, vemos seus antigos aliados políticos eleitos apresentando projetos de lei que visam restringir a visibilidade ou os direitos adquiridos. Que olhar você tem sobre isso?

Guilherme Passamani: Tentativa de provocar pânicos morais. Se conseguirem isso, teremos grandes retrocessos.

Giovanni Dorival: Você acredita que o patriarcado e o conservadorismo se sentem ameaçados em seu lugar de dominante na sociedade com os avanços de direitos aos LGBTQIAP+ e outras minorias?

Guilherme Passamani: Penso que os valores conservadores são intolerantes a mudanças que possam lhes colocar em qualquer tipo de “risco”. As mudanças sociais incomodam porque caminha no sentido de avançar.

Giovanni Dorival: Já que citou Foucault há pouco, poderia nos falar como o discurso conservador como dispositivo disciplinar age contra os avanços de direitos para a diversidade?

Guilherme Passamani: o discurso opera de muitas formas, inclusive como silêncio. Quando se silencia sobre a diferença, se diz muito. Quando se sufoca a diferença, se diz muito. Quando se produz discurso que percebe a diferença como crime, doença ou pecado, está se formando um imaginário sobre o que é a diferença. Ela sempre será ruim, feia, contagiosa, repelente. Entende? É pedagógico construir a diferença como algo do que precisamos nos afastar.

Giovanni Dorival: Você diz ‘pedagógico’, mas não de forma positiva, certo?

Guilherme Passamani: Pedagógico no sentido de formativo. Há uma formação, detida, cotidiana, em todos os âmbitos da vida social. Talvez a formação mais continuada de nossa vida seja para o ódio às diferenças. Diferenças de gênero, de sexo, de classe, de cor, raça, e por aí vai. Tudo que foge a um determinado padrão convencionado como normal.

Giovanni Dorival: A insistência na ideia de uma ideologia de gênero seria um exemplo?

Guilherme Passamani: Claro. Sem dúvida. Algo que não existe na teoria. É uma deturpação teórica. Existem teorias de gênero, ideologia eu desconheço.

Giovanni Dorival: Guilherme, durante suas pesquisas, você encontrou casos de resistência em Mato Grosso do Sul?

Guilherme Passamani: Sim, sim, especialmente nas memórias dos homens mais velhos que foram meus interlocutores lá no Pantanal. Eles contavam histórias muito complicadas, porque era um contexto muito conservador. Inclusive porque se desconheciam as diferenças.

Giovanni Dorival: Pode nos dar um exemplo com um caso mais marcante?

Guilherme Passamani: Um homem casar com uma mulher e mesmo a esposa morrendo, ele segue viúvo apaixonado pela esposa morta para que a cidade não o discrimine. Mesmo assim, vive casos secretos com homens.

Giovanni Dorival: Qual a importância das ações de resistência e visibilidade?

Guilherme Passamani: É a partir da visibilidade e da resistência que se produz referência e memória. Só com memória e referência podemos mostrar a existência das diferenças. Se há essas existências, é preciso que a luta seja para tais existências serem dignas. A primeira luta é para existir.

Giovanni Dorival: A Parada do Orgulho surgiu, também, como expressão de resistência. Por que os detratores da Parada LGBTQIAP+ a acusam de imoralidades?

Guilherme Passamani: Porque deve ser insuportável para os conservadores ver milhões de pessoas fazendo festa. Como essa gente vergonhosa faz festa ao invés de ter vergonha de ser quem são? Eu acho que a Parada é mais complexa que vergonha e orgulho, mas didaticamente penso que pode ser lido nessa chave. A luta pode e deve ser por meio de festa.

Giovanni Dorival: É verossímil as afirmações de que a Parada degenerou ao longo dos anos com práticas obscenas, como apontam políticos e homossexuais conservadores?

Guilherme Passamani: Quando há quatro milhões de pessoas em um determinado lugar, pode acontecer de tudo. A obscenidade é um conceito conservador. É uma definição conservadora. O que é obsceno? Não entendo que essa seja a tônica da Parada. Mas interessa aos detratores lançar luz sobre isso, que podem ser atos laterais, para tentar desconstruir o fenômeno que o evento se tornou. Para desqualificar a visibilidade planetária que o evento conquistou.

Giovanni Dorival: Compreendo. Você tem pesquisado sobre a prostituição masculina. Como ela começa e de que modo se caracteriza?

Guilherme Passamani: Eu não sei responder como ela começa. Mas se caracteriza como mais uma forma de trocas eróticas, afetivas e sexuais entre as pessoas. No caso, os homens no lugar de prestadores desses serviços.

Giovanni Dorival: Ouve-se muito sobre casos de travestis que entram na prostituição por ser expulsas da família e não encontrar outros meios de sobrevivência. Poderia nos falar um pouco sobre?

Guilherme Passamani: Essa é uma realidade da sociedade brasileira que discrimina, mata e deseja travestis em igual proporção. Quando a sociedade fecha todas as portas, muitas travestis, sem conseguir ter um leque de escolha, acaba por serem levadas ao trabalho sexual. No entanto, há pessoas que escolhem o trabalho sexual, porque não percebem o trabalho sexual como feio e degradante. Entendem o trabalho sexual como profissão; por isso, digna.

Giovanni Dorival: Na sua percepção, as conquistas recentes de direitos, tem mudado esse quadro social?

Guilherme Passamani: Penso que sim e penso que tem se diversificado e ampliado o alcance dos mercados do sexo.

Giovanni Dorival: O que pode falar sobre as fobias de gênero no contexto do MS?

Guilherme Passamani: Eu não sei dizer com propriedade sobre isso. Só sei que há muita violência contra as mulheres, há índices alarmantes de feminicídio, discriminação e violências de outras ordens, inclusive letais, a pessoas LGBT.

Giovanni Dorival: Lembra de algum caso de LGBTfobia aqui no estado, em específico?

Guilherme Passamani: Danilo, aluno do mestrado em Antropologia, assassinado este ano[II].

Giovanni Dorival: Puxa! Recordo. Em seu livro Batalha de Confetes você traz experiências em relação ao envelhecimento do homossexual no Pantanal. Quais são as questões implicadas?

Guilherme Passamani: A ideia central é pensar o processo de envelhecimento de pessoas que não migraram para os grandes centros urbanos e vivem sexualidades dissidentes nas cidades de origem, “cidades pequenas” no “interior” do Brasil. O ponto é perceber as diferentes estratégias, desafios, agruras, “vantagens”.

Giovanni Dorival: O homossexual em idade avançada está sujeito a que situações?

Guilherme Passamani: Em tese, pensa-se que está sujeito à solidão e ao desamor. Eu vi muito mais que isso. Nem só de desamparo e doenças vivem as bichas velhas. Há muitas bonitezas. Há desafios, mas há mais que isso.

Giovanni Dorival: Entre as bonitezas de que citou, o livro aborda o carnaval de Corumbá. Por que a função de carnavalesco é tão ligada ao homossexual de meia-idade naquele município?

Guilherme Passamani: Eu não acho que está ligado a essas pessoas nesse momento da vida, mas essas pessoas foram envelhecendo no carnaval. O envolvimento não começa na velhice. Começa na juventude. Trata-se de uma relação antiga (risos).

Giovanni Dorival: De que maneira e que impactos tem essa relação com as escolas de samba para o homossexual de Corumbá?

Guilherme Passamani: O carnaval se mostra como um lugar onde transitam as diferenças. Há espaços para as diferenças. Há receptividade, porque nem sempre o carnaval foi um lugar de prestígio, pelo contrário. Em Corumbá não é diferente.

Giovanni Dorival: Outra situação que você traz no livro é sobre a utilização de um certo orelhão e a presença da Marinha, qual a relevância desses achados?

Guilherme Passamani: Os marinheiros eram parceiros muito desejados. Eles encarnavam os ideais de homens de verdade. Os orelhões eram ferramentas de encontros entre bichas e amantes.

Giovanni Dorival: Além de “controle de população” cantado pela rainha do rock nacional, o que mais é o casamento gay?

Guilherme Passamani: Uma tentativa de garantia da equidade de direitos. Se o estado garante esse direito a heterossexuais, não deveria restringir a homossexuais.

Pesquisador das questões de gênero, Guilherme promove debates e seminários públicos junto ao NENP na UFMS. Foto: Arquivo Pessoal

Giovanni Dorival: Deveras. Como você avalia as conquistas alcançadas nos últimos tempos?

Guilherme Passamani: Ainda insuficientes, mas profundamente necessárias. Conquistadas como resultado de muito suor e sangue.

Giovanni Dorival: Qual seria a razão de ainda haver muita gente no armário ainda hoje?

Guilherme Passamani: O Brasil ser o país do mundo que mais mata pessoas LGBT. É extremamente perigoso ser LGBT e viver no Brasil.

Giovanni Dorival: A pouco você comentou sobre o jovem assassinado por homofobia no início do ano, seria um caso isolado ou existe muito preconceito e violência contra a diversidade hoje, no estado?

Guilherme Passamani: Não penso que seria um caso isolado. Penso que há um encontro infeliz de muitas categorias de desprestígio e ódio social. Tratava-se de um homossexual, afeminado, negro, pobre, periférico. Socialmente essas categorias são todas odiadas. Danilo era tudo isso.

Giovanni Dorival: Muito triste! O que é necessário avançar ainda para as conquistas de direitos LGBTQIAP+?

Guilherme Passamani: É importante que essa luta tenha o apoio de aliados heterossexuais. É necessário alargar a rede de aliados. Sem aliados não há conquistas duradouras, seja no âmbito que for.

Giovanni Dorival: Guilherme, você também é um homem bastante viajado, chegando a realizar pesquisas de gênero em regiões da Europa, como Portugal. É possível apontar traços distintos e comuns do homossexual mato-grossense-do-sul em relação aos outros lugares?

Guilherme Passamani: Eu penso que podemos, claro, apontar diferenças regionais, contextuais. É claro que sim. Mas há também traços comuns, afinal uma cultura gay pop não está apenas na Europa, ou só no MS. Ela é bastante horizontal. Como esses elementos são agenciados em cada contexto é o que me parece interessante de perceber.

Giovanni Dorival: E como são agenciados no estado?

Guilherme Passamani: Eu não tenho essa resposta porque não tenho um estudo com essa abrangência, mas eu imagino que a história do estado e sua constituição econômico-cultural empreste alguma particularidade ao processo. Claro, sempre considerando as diferentes categorias de articulação que constituem os diferentes sujeitos.

Giovanni Dorival: Compreendo. Você está no estado há quase 14 anos, tendo passagens por Corumbá e Naviraí. Mora em Campo Grande há quase 8 anos e, todo ano, pelo aniversário da capital, faz questão de deixar público que essa é a sua terra. Como é ser um homossexual sul-mato-grossense?

Guilherme Passamani: É um desafio. Mas falo isso do alto dos meus privilégios. Tenho certeza que outros tantos são muito mais desafiados que eu, porque são atravessados por ausências e urgências que eu não sou. A minha cor, a minha profissão, o meu gênero e a minha classe me protegem muito.

Giovanni Dorival: Durante minha graduação na UFMS, tive oportunidade de ter sido seu colega por um semestre e, depois, seu aluno em duas disciplinas, podendo observar sua franqueza aberta sobre a própria sexualidade. Apesar de chorar desilusões amorosas as margens do Paraguai, você diria que vive plenamente sua sexualidade nos dias contemporâneos?

Guilherme Passamani (Risos). Eu tento. Mas há limites, claro. Mas eu tento muito e, por conta desses lugares sociais que ocupo, eu penso que consigo transitar com certa “segurança” para viver plenamente a sexualidade. Por isso, não sei se consigo, mas sei que quase sempre tenho “autorização” para isso. E sei que isso é um privilégio no atual contexto.

Giovanni Dorival: Bacana. Quem era o Guilherme Passamani antes das pesquisas de gênero e antes do sul-mato-grossense Passamani?

Guilherme Passamani: Eu era bem mais desinteressante. Sem qualquer dúvida. Sou fruto dessa jornada toda. E essa jornada me trouxe aqui. São 21 anos bonitos. Apesar das agruras. Ou melhor, em razão das agruras.

Giovanni Dorival: Me parece que foi uma jornada bonita.

Guilherme Passamani: Desafiadora. Dolorosa em alguns momentos. Mas bem bonito em outros tantos.

Giovanni Dorival: E hoje, com toda essa bagagem adquirida, o que acha ser importante dizer com relação ao Orgulho Gay e a diversidade de gênero?

Guilherme Passamani: Eu tenho orgulho das bichas veteranas que sangraram até a morte para para a homossexualidade ser uma forma de vida vivível. Sem saber, elas foram decisivas para que eu pudesse ser um professor universitário. Elas não viram nada disso. Mas foram fundamentais para tudo isso. Disso eu sinto orgulho.

Giovanni Dorival: Quem é o Guilherme Rodrigues Passamani no meio das questões de gênero dentro do arraial de Campo Grande, hoje?

Para Guilherme, a possibilidade de ocupar lugares antes vetados para os indivíduos LGBTQIAP+, é fruto daqueles que sofreram e morreram em luta por direitos. Foto: Arquivo pessoal

Guilherme Passamani: (Risos). Eu amo o nome antigo de Campo Grande. Arraial de Santo Antônio de Campo Grande da Vacaria. É lindo. Sou mais um entre as pessoas que pesquisam esses temas e esperam contribuir para construir uma sociedade mais justa, solidária e afetuosa.

Giovanni Dorival: Necessário. Muito obrigado, Guilherme!

Guilherme Passamani: Acabou? Nossa! Eu curti muito!

Giovanni Dorival: Sim. (Risos). Também. É sempre muito bom escutar o ler o que você diz.

Guilherme Passamani: Muito obrigado. Agradeço mesmo. Super obrigado! Bom descanso!

Giovanni Dorival: A você também! Muito obrigado!

 

 

 

 

Nota:

[i] O professor se refere a diversas obras do filósofo, sociólogo francês Michel Foucault, entre as quais podemos destacar A História da Loucura (1961), A Arqueologia do Saber (1969), Os Anormais (1975), História da Sexualidade (1976), e, O Nascimento da Clínica (1979). Grosso modo, para Foucault, as instituições funcionam como local de discurso que regulam, gerenciam e normatizam o pensamento e as ações dos indivíduos na sociedade. Ao se estabelecer como um dos dispositivos de poder no século XIX, a psiquiatria se torna o órgão regulador do que é e do que não é normal, tendo, de início, categorizado as expressões sexuais fora da heteronormatividade como anormal, de modo a viabilizar persecuções e uma série de violências psicossociais, simbólicas e físicas contra aqueles que escapam da escapam da normatividade imposta.

[II] Em 04 de março de 2023, Railson de Melo Ponte, 27 anos, conhecido como “Maranhão”, teria assassinado o mestrando da UFMS, Danilo Cezar de Jesus Santos, 29, ao cobrar R$ 50 da vítima. De acordo com o relatório do inquérito policial, encaminhado para a Justiça no dia 17 de março, o assassino confesso mostra desprezo por homossexuais.

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