Caderno BColunistasGeralGiovanni Dorival

No Maio Amarelo

Recuperado das dores, embora caminhando com certa dificuldade, Odair não desacelera o sonho de um instante novo de baladas regadas a cerveja. Sim. O pior já passara, especialmente aqueles sete primeiros dias de dor e morfina. Mas, agora, alheio ao custo de R$4.000,00 ao dia para o poder público, ele passa as horas planejando novas pegações e o retorno a vida diária, ao cotidiano para longe daquele leito cheirando a éter. O quarto de hospital, onde está internado há 41 dias. E, irá permanecer por, pelo menos, mais 23.

Há 34 dias, uma Paola também indiferente ao custo da internação de Odair, retornara sorumbática da missa naquele sétimo e melancólico dia. E, trancando-se no humilde quarto do casal, atirou-se na cama rogando a Deus, com vivo rancor, para que Odair pague pelo sinistro que causou.

Entregue ao pranto e a laceração das saudades, a pobre Paola que precisará se virar para terminar de criar os 3 filhos pequenos, recorda com saudades aqueles últimos momentos de um domingo repleto de fé, alegria familiar e esperanças futuras.

Um domingo de maio que amanhecera fresco, embora o céu luminoso de cores saturadas entre o círculo sagrado do astro vital, esse sol que aquece e desfaz as trevas noturnas, sol que emerge da barra da manhã saudado pelo canto matinal dos curiós, bem-te-vis e na algazarra das araras que visitam o quintal batido de Paola, onde os pés gigantes de manga, da jaqueira esparzem suas folhas secas e, de época em época, sustentam seus frutos saborosos. Ah, sim. Era um dia lindo de domingo.

Logo cedo, a jovem esposa e mãe fizera o desjejum e servira a mesa. Douglas, o marido, despertara um pouco depois, pois o deixara descansar como recompensa do plantão ostensivo como motorista do Samu. Na véspera, esse Douglas de pele cor de oliva, compleição mediana e muito esforçado em seus propósitos, a despertara extasiado durante a madrugada para contar que fora convocado para completar o quadro de médicos do município.

Aquele estase, então, passou do marido para a esposa e desta para os filhos que surgiram a porta do casal, sonolentos e curiosos. Deu-se uma pequena confraternização familiar. As crianças comemorando o anúncio de uma vida nova, longe daquele subúrbio onde abundam notícias criminais, a casa alugada dando espaço para um pequeno palácio em bairro pericentral da capital.

O conforto necessário e, quiçá, até um pouco supérfluo após uma vida inteira de dureza, de escassez. Como nos dias em que Douglas esteve desempregado e o dinheiro que Paola fazia revendendo lingeries só serviam para completar o dinheiro do arroz com ovo. Sim. Tudo seria diferente e, na naquele domingo cedinho foram a missa agradecer as bênçãos.

Do rito religioso, passaram pelo shopping onde almoçaram na praça de alimentação. Felício, o caçula, com sete anos, pôs-se então a observar entre a multidão nas mesas ao redor, homens que lhe parecessem médicos. Apontando como características as roupas alvas, ou estilo social. Douglas ouvia e perguntava se ele imaginava o pai assim. E a resposta, era sempre divertida.

— Mas, não com essa careca! —, respondeu a criança quando questionado sobre um sujeito amplo, vestindo jeans e camisa azul clara, calvo e de bigode. — Parece o Seu Barriga. —, completou, provocando risos que engasgaram o Fabrício, de 9.

Dali, passaram a tarde no Parque das Nações Indígenas, onde alguns voluntários distribuíam panfletos sobre o Maio Amarelo, informando dosbre os necessários cuidados no trânsito. Caminharam admirados com a luz derramada do sol, refletindo no lago, a margem do qual um casal de quero-quero fez um ninho próximo a uma das extremidades da ponte. E, de vez em quando Fabrício e Fenício olhavam para as torres luxuosas na direção do ocaso comentando como seria engraçado os vizinhos confundindo os gêmeos. Filhos do doutor Douglas.

Eram 19:45h quando aquela família feliz e mergulhada nos anseios de uma vida plena de possibilidades felizes saiu do quiosque onde tomaram água de coco e dividiram uma poção de camarão com cebola, seguiu para o velho carro em direção a casinha no subúrbio.

— Seu pai tem que se apresentar cedo amanhã para ocupar o cargo de médico. —, justificou Paola, com extremado orgulho, ao pequeno Felício.

Douglas deu a partida, rumou pela avenida Afonso Pena rumo a avenida Calógeras e a seguir, continuaria pela Costa e Silva até o bairro Jardim Canguru. De vez em quando, as mãos do casal se tomavam num gesto enlevado de amor. As crianças riam. Eles se olhavam felizes e envergonhados, mas mantinham a ligação.

Parado num sinaleiro fechado, Douglas sorriu e lançou beijos a esposa. E quando o semáforo abriu, retomou o caminho ainda sorrindo quando tudo se perdeu, e tudo o que Paola lembra é isso. O vulto de um carro subindo como raio a Padre João Crippa invadindo a frente e, como? Mas, era! Um baque, quando um Creta os colheu pelo lado de Douglas.

Douglas morreu na mesma hora. Fabrício ainda agoniza na UTI, um andar abaixo daquele andar do hospital onde aquele Odair, visivelmente embriagado, possivelmente disputando racha, consideravelmente propenso a sair impune, segue sonhando com outras noitadas igual àquela do acidente. Mas, quem sabe, na próxima, não seja ele, mas outro a ficar vivo para contar a história.

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