Da Pré-História Ao Banho De São João de Corumbá
As festas de fogueira e as heranças de danças que se perdem no tempo[1]
Com o objetivo de avançar em minha investigação sobre a cultura do Estado, intimamente, considerava os conhecimentos que as atividades práticas dos laboratórios de jornalismo da UFMS trariam para mim e como poderia agregar ao projeto de livro-reportagem que iria realizar na fase do TCC. Nessa elucubração, rebuscava na memória as velhas aulas e livros didáticos trabalhados nos tempos de escola. Figuras sobre a Casa Pimentel, sobre os Bugres da Conceição, sobre José Antônio Pereira, enaltecido como explorador e fundador da capital nos livros didáticos e. Sim. Principalmente. Não apenas isto: quase que exclusivamente. A Fauna e a Flora do Pantanal, Bonito e os demais pontos turísticos. Quanta coisa não terá permanecido de fora?, cogitava. E, de fato, não sabia nada, por exemplo, sobre o Banho de São João de Corumbá e a origem muito antiga das festas juninas com rituais de dança. Arte e cultura interligadas na identidade de um povo.
De acordo Maria Cecília Bazzotti, na medida em que o homem pré-histórico mudou seus hábitos no período Neolítico, passando a cultura e ao surgimento das civilizações antigas, as expressões como a dança, e a música ganharam sofisticação. O estabelecimento de uma classe religiosa que irá supervisionar os ritos de dança confere um caráter de representação dos mitos e deram origem ao primeiro ator de teatro. Conhecidas como danças milenares, essas expressões eram realizadas com utilização de máscaras, e foram as primeiras danças em grupo de roda e em filas onde, na maioria das vezes, os participantes são representados de mãos dadas, caso das celebrações das mudanças de estações e da colheita dos antigos celtas, romanos e egípcios.
Com o avanço do Cristianismo e sua política de sincretização, essas expressões foram ressignificadas em festejos de caráter popular e religioso, caso das Festas de São João, do Divino Espirito Santo e do Dia De Reis que agregam elementos das antigas celebrações pagãs e que, no Brasil, também ganharam características regionais, caso do Banho de São João de Corumbá.
Experiências extremamente produtivas para o projeto que eu me propunha realizar no trabalho de conclusão de curso, funcionando como experiência no âmbito do jornalismo de rádio, os dois laboratórios de Radiojornalismo, junto às demais disciplinas práticas, serviram de instrumento para o levantamento de informações deste livro junto aos entrevistados. Assim, nos trabalhos sobre a formação e as características do Estado de Mato Grosso do Sul, encontrei algumas curiosidades sobre as heranças dessa evolução artística e cultural em solo sul-mato-grossense.
Destarte, durante o primeiro semestre de 2019, ao lado do primeiro grupo de equipe de trabalho do Laboratório I, formado junto aos meus colegas acadêmicos Cauê Reis, Letícia Monteiro, Letícia Schiavon e Gustavo Bonotto, descobri, por exemplo, que a procissão que acompanha os andadores até o rio Paraguai com dança caipira no percurso são um exemplo dos resquícios das antigas tradições de danças milenares, como esclareceram aos colegas Letícia Schiavon e Cauê Reis, o antropólogo, professor e pesquisador Álvaro Banducci e a mestranda de Letras, licenciada em arte educação pela UEMS, Jane Motta, durante a gravação do podcast sobre as festas juninas:
— O primeiro questionamento que trazemos é: por que, na sua visão, Álvaro, as festas juninas são tão populares? —, indagou Letícia Schiavon.
— Bom. Na verdade, a princípio é uma festa pagã, mas que celebrava o solstício de verão, na Europa. Em várias regiões, vários países da Europa. E ela é uma festa que a igreja católica acaba por trazê-la para si, e aí celebra como as festas juninas e em específico, São João. E essas festas foram trazidas para cá desde o período da colonização. Os jesuítas faziam essa festa com os índios e a fogueira, a cantoria, e isso fascinava bastante as comunidades indígenas. Então desde o início da colonização já é uma festa que percorre o território brasileiro pelas mãos dos jesuítas. E vai ficando uma festa de caráter tradicional nos rincões brasileiros. Uma festa que consegue se estruturar por todo o território nos rincões e depois ela vai chegando para a cidade. Assim, é uma festa de muito tempo, diante dessa tradição religiosa num país católico. Fortemente católico como no Brasil. —, respondeu o professor.
— E para você, Jane? Por que as festas juninas são tão populares? —, questionou Cauê.
— Bom. Partindo do princípio, como o professor disse, da origem pagã das festas. De colheita. Da celebração de colheita. Nos primórdios, a função era evitar que tivesse perda de colheitas, estiagem. Os bichinhos dos cereais e tal. Com a chegada dos jesuítas ao Brasil, exatamente, como ele disse —, explica com um gesto vago de mãos para Álvaro —. A primeira festa joanina, foi comemorada pelos jesuítas com o uso da fogueira. Nós temos o início do inverno no dia 20 de junho, e a Festa de São João no dia 24. E, realmente, a catequese usou isso. Usou. Os Jesuítas para catequizar os indígenas usaram a adoração deles aos deuses através das danças e fogueiras.
Letícia Schiavon emendou outra questão:
— Mas em suas origens as festas herdaram as tradições pagãs e ao longo do tempo no Brasil foram incorporados elementos de religiões de matriz africana, você pode falar um pouquinho para gente sobre essa perspectiva?
— Religiosamente falando, a cultura africana, a cultura aos orixás, não traz referência religiosa nenhuma com a festa junina. —, respondeu Jane, com veemência.
— Corumbá traz. E isso é tão bonito lá! —, sussurrou Álvaro a Cauê.
Contudo, é preciso esclarecer: só temos, hoje, alguma ideia dessas manifestações artísticas da era primitiva, por meio de representações em cavernas. De outra forma, o que na contemporaneidade conhecemos sobre a dança primitiva só chegou aos nossos tempos por meio de amalgamas originando as danças espontâneas e emocionais encontradas em alguns rituais contemporâneos que. Sim. Após milênios, ainda se fará presente no Banho de São João.
Letícia Schiavon prosseguiu:
— Álvaro. Voltando para as festas de Corumbá, elas têm momentos de religião de matriz africana também?
O professor respondeu com evidente entusiasmo:
— Excelente essa pergunta, porque ela vai remeter a outro aspecto que singulariza a festa de Corumbá. E, você sabe que o São João Batista, nas religiões afro-brasileiras, é considerado o orixá Xangô. No dia de São João-Xangô. Tem os dias de São João nos terreiros de Corumbá e Corumbá tem aproximadamente quatrocentos terreiros. Muito provavelmente muito mais do que isso. Os terreiros promovem a festa para Xangô e levam Xangô para ser batizado no rio Paraguai. E isso é de uma beleza indescritível porque você tem toda uma mistura. Você tem os terreiros de Umbanda em que de manhã cedo, no dia da festa de São João, os andores são levados para a igreja católica e lá eles são benzidos pelo padre, com água benta; à noite, esses mesmo andores, são reverenciados e são recebidos pelos filhos de santo. Então, o Preto Velho vem, reverencia o andor onde está São João-Xangô e aí eles são levados para o porto. Às vezes como São João, as vezes como Xangô, mas sempre como os dois. Dependendo do terreiro, eles podem chegar e fazer um ritual, muito mais próximo do ritual afro-brasileiro do católico, inclusive, há pessoas que dizem que a festa do banho de são João na cidade de Corumbá só permaneceu vivo por causa dos terreiros que levavam Xangô para tomar banho no rio.
Naquela tarde, logo após a gravação do podcast, enquanto transitávamos pelos corredores da UFMS e mantínhamos uma conversa informal sobre o assunto, Jane explicou-me sua posição com base no pensamento decolonial. Segundo a mestranda, trata-se de um movimento latino-americano emergente que objetiva libertar a produção de conhecimento de sua origem eurocêntrica com críticas à suposta universalidade do conhecimento e ao predomínio da cultura ocidental, de modo que ela se sentiu completamente incômoda com a associação entre Xangô e São João no banho:
— Veja bem. Minha crítica se fixa, única e exclusivamente no contexto do sincretismo. Como praticante e pesquisadora de uma religião de matriz africana, simplesmente, não entra em minha cabeça que se pegue um orixá do fogo, e se dê banho. Não faz sentido. Daí você me diz, “mas tem o sincretismo”. Realmente, tem. Mas ele pertence a um tempo que já não existe, Giovanni. Porque, veja bem, estamos libertos disso desde a abolição. Um outro golpe sofrido pelo povo negro, ok? Então, é uma associação enganosa, depreciativa, desvalorizadora de um povo específico. Que foi historicamente construído a partir do período colonial. Então, você pensa: para dominar um povo, ou uma pessoa, neste caso os negros traficados do continente africano, foram tiradas deles a língua materna, suas crenças religiosas de maneira que a única forma de conservar suas tradições foi por meio de associações com as crenças impostas pelo seu colonizador explorador.
Não obstante, no dia 19 de maio de 2021, após dez anos de processo aberto pela Prefeitura Municipal de Corumbá, por meio da então Fundação de Cultura e Turismo do Pantanal, em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, o Conselho Municipal de Políticas Culturais, entre outros, a Festa do Banho de São João de Corumbá foi declarada Patrimônio Imaterial do Brasil — notícia recebida com emoção na cidade e por mim, que soube por meio de um telejornal —.
Segundo o site municipal Corumbá MS, o Banho de São João teve origem na Europa com o costume português do banho de rio obrigatório no dia do santo a partir do século 14. Conforme relatos de historiadores, em Corumbá, a despeito da evidente presença da cultura africana, a tradição surgiu com a chegada dos árabes por volta de 1882. Para o professor Álvaro Banducci, que desenvolve trabalho na região, essas manifestações religiosas no Banho de São João costumam agregar mais seguidores durante o percurso até o Rio Paraguai:
— Não raro, quando chega no rio Paraguai, depois do batismo ritualizado ao santo, o pai de santo ou a mãe de santo continuam batizando as pessoas que que estão ali. Então é uma mistura, porque às vezes eu tenho um santo católico mas vou lá receber a benção de pai de santo ou de uma mãe de santo, e a população encara isso com muita naturalidade. Isso faz parte da beleza da festa que é a festa do banho de São João de Corumbá. Há um diálogo religioso intenso, fortíssimo e extremamente poderoso. Essa é a característica do São João de Corumbá que você não irá encontrar em nenhum outro do país. —, arrematou o antropólogo.
Considerando o passado pré-histórico e milenar da dança, a procissão que acompanha os andadores até o rio Paraguai com dança caipira no percurso é um exemplo dos resquícios das antigas danças pagãs que, provavelmente, foram praticadas pelos homens primitivos que habitaram a região. Danças acompanhadas de sacrifícios e oferendas organizados em forma de ritual. Ritual que antecedia a dança com procissão preliminar — como a que fizéramos ao sair da sala de aula no primeiro piso da Escola Estadual Hércules Maymone em direção a quadra de esportes —. Ah, sim. Ritual. Ritual que tinha seu ápice com uma dança circular em torno do altar. Tais as explicações que acompanharam a aula prática de História da Dança sintetizadas no trabalho História Da Dança – Linha Do Tempo, da doutora em comunicação e semiótica e pesquisadora do Centro de Estudos em Dança da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Rosana van Langendonck. “Os rituais e oferendas em forma de dança têm o sentido de festejar a terra e o preparo para o plantio, de celebrar a colheita e a fertilidade dos rebanhos. A identificação, pela dança, com os movimentos e as forças naturais representa uma forma de o homem se sintonizar com o ritmo da natureza, auxiliando-o na programação de suas ações”.
Assim, vemos pela História da Dança e pela entrevista com o antropólogo Álvaro Banducci com a arte educadora Jane Motta que a arte e a cultura estão interligadas na construção e identidade do sul-mato-grossense expressa, também, no andor de São João que desce às margens do Rio Paraguai sob o pôr do sol vermelho-brasa neste belo Mato Grosso do Sul.
Nota:
[1] Extraído e adaptado do livro-reportagem “Belo Sul Mato Grosso: Um Percurso sobre arte e cultura em MS” de Giovanni Dorival.