Lisio Lili

CERAMICA TERENA = SUPORTE DA CULTURA INTANGIVEL DE UM POVO

Ainda é um pouco complicado, mas compreensível, a absorção por parte das sociedades
envolventes a ideia de que as sociedades indígenas tem a visão de mundo diferente. Um
comportamento que tenho certeza intriga as pessoas é como os povos indígenas lidam com o
tempo.

Certamente por conta dessa vida acelerada e de rápidas mudanças, nesse atual cenário
contemporâneo e urbano, em que a pressa passou a ser uma regra, se indague qual a razão
dos povos indígenas parecer ignorar o relógio.

Se porventura alguém aprofundar nessa linha de raciocínio, certamente há de se deparar
surpreso quantas convenções ditadas pelo chamado desenvolvimento vem sendo ignoradas
pelo modelo cultural e secular desses povos tradicionais.

Caberia aqui perguntar a quem desafia essas práticas consideradas e ditas estáticas ou mesmo
imutáveis, parecendo incapazes de ver e considerar as enormes mudanças que a modernidade
reclama, quer as de ordem humana e as de ordem tecnológica?

De imediato, apenas para reflexão suponho, não seria nós mesmos os responsáveis por
desqualificar tamanhos avanços quando ao invés de celebrar feitos reduzimos nossos
pareceres e reações de forma monossilábica ao sim/não, bom/ruim, bonito/feio, caro/barato?

Com as terenas ceramistas não é bem assim. Que se analise detalhadamente os “interditos e
rituais” na confecção da cerâmica pela mulher terena, termo usado pela antropóloga Katya
Vietta na tese “Os valores da cerâmica terena campo-grandense: um silencioso patrimônio
intangível”.

Para começar a confecção de uma peça, obedece a uma liturgia reverenciosa, podemos para
melhor compreensão, compara-las a preparação de uma viagem, se define o destino, adquire
meios de transporte, deixa a casa em ordem e por final embarca.

Pode ter paralelo mas não é bem assim. Valho-me para sustentar presente texto, das inúmeras
pesquisas elaboradas de forma devotada pelos “purutuie” e também pesquisadores indígenas
dos momentos preparatórios dessa criação aqui denominado intangível e que estão ai para
leitura dos leitores interessados.

A ceramista não pode estar em período de regra, tem que respeitar fase da lua, o tempo
precisa estar estável, nada de tempo chuvoso, a madeira destinado a queima das peças é
especifico, a argila o principal elemento dessa produção não é encontrado em qualquer lugar e
só pode ser disponibilizado o necessário não podendo então estoca-la, são os principais
cuidados coletados por estes pesquisadores.

Podemos nos perguntar porque tanta ritualidade na confecção de uma cerâmica? Exatamente
porque os elementos dessa peça em criação, tanto as tangíveis quanto as intangíveis em língua bem claro “tem dono”. A argila, a madeira, o fogo que são tangíveis é propriedade da Mãe
Natureza e as intangíveis tais como os desenhos, formas, cores, histórias, valores, sentimentos,
vidas, conhecimentos ou técnicas pertencem a Ancestralidade.

A confecção de uma peça (ipunêti) aqui denominado criação é a aliança do material com o
imaterial, do tangível com intangível, do passado com o futuro, do terreno com o espiritual
(Exiwa), da criatura com o Criador (Itukooviti).

Na verdade todos os atos de produção acima mencionados, aqui vistos e exercidos de forma
contrita são mensagens cifradas dizendo que o papel guarnecedor da Vida e da Terra
pactuadas estão sendo consideradas. Não é uma peça utilitária que está em produção mas
trata-se de uma celebração da Vida com a Natureza.

Pois não é que a Mãe Natureza além de caprichosa é também surpreendente, aqui visto ao
designar entre o povo terena exatamente a mulher terena dispondo-a de muitas habilidades,
mas foi generosa demais quando as dotou-as de habilidades inatas, capazes de produzir peças
e através dessa pratica ensinar guarnecer a visão de mundo do seu povo.

Silenciosa e imersa na produção sabe que seu oficio é guarnecer sua origem e identidade,
assim destemida nessa sua senda existencial ignora os percalços, as luzes ilusórias e fugazes de
uma civilização em decadência que só “enxerga o umbigo” como bem disse Fabio Trad em
discurso emocionado quando presidente da OAB/MS na Câmara Municipal de Campo Grande.

Quem nunca pôde acompanhar uma modelagem, deveria se desafiar a assistir um desses
momentos, é de absoluta magia e de conexão, é quando ela, mulher terena, introspectiva e
conceptiva, parece conversar com a criatura dando-lhes os informes acerca dos componentes
que possui, transferindo-lhes as identidades, a razão de sua existência, parecendo pedir da
peça um compromisso e lealdade.

Já pude assistir esses momentos de moldagem, numa ocasião me pareceu que a argila se
negava a moldar-se, parecia uma criança birrenta, se esvaiava em si mesmo, mas a terena
habituado e acostumado a esses expedientes, em sussurros inexprimíveis, foi pouco a pouco
ajustando e conduzido a sua criação.

A peça ainda não está concluído, como que em uma linha de montagem outras etapas serão
cumpridas mas a mulher terena vibra, vai secar a peça no sol pra logo esfolia-las com pedaços
de pedras também especificas, visando dar-lhe brilho e se nessa etapa agora da queima da
cerâmica, termine por trincar e quebrar é jogado fortemente para inutilizar a peça.

Inutilizar a peça é um ato de indignação, é porque aqui a customização não tem lugar, aqui não
tem o reaproveitamento, aqui a excelência é requisito maior, se não as possuir, não tem como
representa-la, não tem como representar a história milenar do seu povo.

Esse ato brusco de indignação da mulher terena não parece apropriado para esse contexto de
amabilidade que caracteriza o local, mas trata-se de uma mensagem dura e clara para quem
pensou criar, lhe dizendo que é incapaz e indigno dessa missão.

Como se buscou explicar, a manufatura cultural do povos indígenas tanto terena quanto
outros povos não tem similaridade com processo de produção em série, mas trata-se de um
ode a existência, cultuando Itukooviti (Criador) e exaltando as capacidades e habilidades
inatas, garantidora de uma vida liberta e autônoma.

Numa sociedade que insiste em impor um único olhar, não para melhor assistir mas para
oprimir e depois marginalizar, a mulher terena reage com o seu labor, revolucionaria, insiste
silenciosa em mostrar que há outros olhares que podem possibilitar outros mundos quem sabe
mais inclusiva.

Portanto saber ver com o olhar a beleza da peça e saber admirar com a alma uma peça
produzida pelos povos indígenas é início de conexão para compreensão e valorização da
cultura indígena, o lendário Levy Strauss disse que quando esteve com povo jivaro constatou
que quando aquele povo vê uma vaso de argila enxerga uma mulher.

LISIO LILI – terena, xûmono, agente cultural
(67) 99141-8032

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